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Canadá: aventura no reino dos ursos-pardos

De alguma maneira, a sensação é de estar em um filme de Indiana Jones. Locação: um braço de mar no noroeste do Canadá. Modo de chegar: um hidroavião Otter, fabricado em 1956, em que os passageiros usam fones de ouvido para suportar o rosnar do motor e o tremor da cabine nas (muitas) turbulências. Com uma garantia: a de que não existe avião mais seguro no mundo. O piloto, Jack, jura, garante e é capaz de registrar em cartório.

O objetivo: encontrar ursos em seu próprio território. Ursos-pardos que o homem vem aniquilando há séculos, mas que, aqui, no Knight Inlet, ainda encontram alguma paz. Para entender melhor: o Oceano Pacífico, nessa área próxima ao Alasca, é protegido por inúmeras ilhas e arquipélagos; ao mesmo tempo, talvez em troca, penetra terra adentro em diversos braços, onde encontra rios cristalinos. São os inlets, e esse, chamado Knight (cavaleiro, em inglês), avança quase 40 quilômetros nas entranhas do país. A região é um paraíso para os salmões. E os salmões são um banquete para os ursos.

O Otter dá mais uma chacoalhada ao virar à direita, entre nuvens baixas. Mas segue adiante, bravo. De repente, na beira da mata, um pequeno aglomerado humano. Pequeno não: mínimo. Vendo mais de perto, parece apenas um grupo de construções amontoadas. E, mais de perto ainda, quando a quilha do hidroavião está prestes a tocar as águas, fica claro: é um punhado de telhados em cima de um grande flutuador. Hora da trilha sonora: os exploradores acabam de alcançar seu destino. A chuva cai, mas faz parte do enredo. Vê-se uma pequena enseada, chamada Glendale Cove. E – acredite – ancorado a ela, um hotel flutuante. O Knight Inlet Lodge, mencionado por certas publicações como um dos dez destinos mais exóticos do mundo.

Rápido flashback para situar o leitor/espectador. O lugar é de 1968, feito, inicialmente, para pescadores de salmão. Mais tarde foi adquirido pela família Wyatt, natural da região, já com o propósito de ser um centro de observação de ursos grizzlies – que é como os pardos são conhecidos por aqui. Um incêndio destruiu completamente o refúgio em 2012. Ainda bem que flutuava: a balsa, com os restos queimados, foi levada até um porto. Em oito meses, o hotel estava novo e voltou, rebocado, para o Glendale Cove, no braço de mar.

Imagine a cena da chegada do hotel reconstruído. Uma construção de 20 apartamentos, salas de estar e jantar, sala de roupas para quem quer ver ursos e um predinho anexo para todos os guias e funcionários estaciona perto da margem. Longos cabos de aço são esticados para ancorar o lodge à enseada. Sob o olhar curioso dos ursos, a vida ressurge na lonjura do braço de mar.

De volta ao presente, os passageiros do hidroavião já se sentem em outra dimensão: a dos sonhos e dos filmes. Não haverá, a partir desse momento e durante toda a estadia, nenhuma comunicação com o mundo. Internet, celular, telefone, televisão. Não: estamos em um passado que parece muito antigo, quando nada disso existia – e, portanto, não fazia falta.

Novos atores entram em cena enquanto o hidroavião descola da água, levando os últimos hóspedes de volta ao mundo real. São os guias, todos eles peritos em ursos. Personagens tranquilos e espertos como os animais com os quais convivem. No comando, Brian Collen, gerente do lodge. Suas primeiras explicações são ligeiramente ríspidas, porque falam de segurança. Obediência a quem conhece. Respeito aos ursos que estão sempre por perto e podem até entrar no refúgio. Já o fizeram antes. Por isso, nada de comidinhas (chocolates, doces etc.) nos apartamentos. O faro dos grizzlies é proverbial. E, por favor, nada de perfumes. Eles também sentem, de longe, e podem vir checar sua grife preferida. Se você der de cara com um em frente ao seu quarto, não corra, não grite e nem tente fotografá-lo. O urso é mais forte, mais rápido e mais selvagem que o homem. Mostre que você é de paz e espere-o passar. Os guias não falam em orações, mas essa é uma decisão sua.

Brian segue orientando os aventureiros recém-chegados. Tem uma planilha e um spray de som nas mãos. Se você ouvir a buzina de um caminhão nesse canto silencioso do Canadá, saiba que é aviso de urso nas imediações.

A chuva não cessa e faz um friozinho leve, apesar de estarmos nos últimos dias do verão. Outros guias – Ryan, Lenka, Debra e os demais – já estão preparando os barcos. Os novatos são encaminhados para o que é chamado de dry room. Ou vestiário, como se diz por aqui. Eu já havia sido informado a respeito. O uso de aviões pequenos obriga os hóspedes a levar uma bagagem incipiente. E a compensação é de que todos pegam o que precisam para suas expedições no vestiário. Sobrecalças de borracha, casacos corta-vento – que servem, também, como flutuadores em caso de naufrágio –, botas de borracha, binóculos de grande precisão.

Quinze minutos depois do desembarque aéreo, os hóspedes já parecem um bando de bombeiros. Ninguém ainda viu o próprio apartamento. Mas, quando se trata de safáris com urso, não há tempo a perder. Os horários serão rígidos. Os trabalhos também.

No momento da primeira expedição, chamada de familiarização com o lugar, já estão todos no clima. Vinte e quatro horas depois, a sensação é que vivemos há muito tempo na floresta e que  sabemos tudo sobre ursos pardos.

Calma: vamos falar deles em breve. No momento, estamos embarcados em uma pequena balsa da alumínio com assentos giratórios. O guia de roupas excêntricas (Ryan é assim mesmo, como soube depois), um casal de viajantes ingleses de meia-idade, o fotógrafo Marcelo Spatafora e eu. A embarcação cruza o braço de mar em direção a um ponto onde os ursos – as fêmeas, sobretudo – costumam passear e cavar o solo antes coberto pela maré em busca de pequenos crustáceos.

Pelo binóculo, veem-se pedras e manchas escuras na beira do mar. Ryan pede silêncio. O motor é desligado e o barco desliza, sereno, até a poucos metros da terra. Bingo! Um urso! Um feroz animal carnívoro que, porém, parece ter a doçura de um cordeiro – ou de uma criança.

O silêncio é obrigatório, mas, dentro de cada um de nós, novos aventureiros, explodem fogos de artifício. “O primeiro urso livre a gente nunca esquece” – diz uma voz interna. Mesmo que não avistemos nenhum outro durante a jornada, a missão já está cumprida. Mas Ryan liga o motor e segue costeando. O lodge flutuante parece pequeno na outra margem. Mais um urso. E uma fêmea com filhotes. De longe, simplesmente nos ignoram. “Se alguém de vocês resolver gritar, vai ver a rapidez de um urso nadando”, avisa o guia bem-humorado.

Até a volta ao hotel flutuante – que é firme como se estivesse em terra –, já temos uma certeza: todos os hóspedes verão ursos. Eles estão por toda parte, mais escuros ou mais claros, grandes ou pequenos. Não foi por outra razão que um hotel estacionou por ali.

Antes de falar dos ursos, vale descrever os hóspedes, todos eles caçadores de emoção. São senhoras e senhores de meia-idade, prósperos e aptos a pagar muito por uma breve experiência que, porém, jamais lhes sairá da cabeça. A maioria absoluta é formada por ingleses e outros europeus. Uma ironia: houve tempos em que os ursos-pardos eram abundantes na Europa. Hoje estão praticamente extintos. Para vê-los é preciso vir até aqui, em um pedaço ainda pouco tocado do planeta. Os australianos também são visitantes assíduos. Quase não há canadenses ou norte-americanos. E brasileiros – espero – a partir deste relato podem fazer parte desse thriller. Ninguém fica mais do que dois dias no Knight Inlet Lodge. É suficiente. Além disso, o refúgio fecha entre outubro e maio, durante o inverno. E não apenas porque faz frio, mas porque, como todos sabemos, os ursos hibernam pelo menos cinco meses por ano. Não há como vê-los, portanto. A raridade, a exclusividade e os próprios hábitos dos grizzlies tornam essa aventura mais do que um fato incomum. O medo de perder a chance de ver um urso de perto faz com que uns policiem os outros. Ouvem-se pedidos de silêncio e de espaço para as lentes.

A voadeira retorna para o almoço no refeitório comunitário, com mesas coletivas, onde aventureiros trocam informações sobre seus avistamentos. Todas as refeições ocorrem no mesmo lugar. Sempre com bons pratos servidos em forma de bufê. Há uma “ilha” com água, sucos, café e chás, permanentemente disponível. No jantar, há vinho para ajudar a embalar os sonhos. Mas ninguém precisa disso. Os dias são intensos (e cansativos) nesse filme de Indiana Jones. Café entre 6h30 e 7h30 da manhã. Partida imediata para a primeira das quatro excursões diárias. Há diversas outras que você pode escolher e não fazem parte da programação. Caminhar na floresta com guias até pontos mais elevados. Remar rumo aos ursos nos caiaques que pertencem ao lodge. Ou seguir a bula. Avistamentos esparsos matinais. Outra aproximação, ainda mais intensa e bela, no momento em que a maré sobe. É quando os barcos podem ir até o estuário dos rios que se encontram com o mar, lugares inatingíveis em outros momentos. São áreas onde os ursos convivem com águias, garças e outras aves locais. Rios cristalinos, com peixes nadando quase à tona. E, aqui ou ali, ursos cavando e comendo.

Pronto: vamos a eles. Os ursos pardos comem 17 horas por dia e passam o resto do tempo em deslocamentos. Vivem cerca de 30 anos e podem perder mais de 40 quilos enquanto hibernam. Nessa região, podem ter 1,80 metro de altura e pesar 140 quilos; há grizzlies, de outras partes, que chegam a 3 metros de altura. A esses parece mais sensato ver de muito longe. Se são agressivos? Depende da atitude de quem entra em seu território. Quando invadimos, a pé, o lugar em que vivem, temos de ir juntos e silenciosos. A título de anúncio, os guias cantarolam baixinho: “ Ê bear, ê ô”. É preciso: eles odeiam ser surpreendidos. De resto, ficam na deles. As fêmeas protegem os filhotes. Os machos roçam seu corpo em determinadas árvores, para que seu pelo fique impregnado de um aroma que atrai as “meninas”.

Tivemos a sorte de ver uma cena dessas de perto. “Uma raridade”, garantiu-nos a guia, que contou ter visto essa espécie de “momento-coceira” dos animais apenas uma vez em vários anos.

Ótimo: não estamos mesmo aqui para brincar, embora esse trabalho seja tão incitante como encontrar o Santo Graal em um dos filmes estrelados por Harrison Ford. A cena ocorreu em um dos dois mirantes mantidos pelo lodge no meio da floresta, diante de um rio coalhado de salmões. Fomos duas vezes ao local. Na primeira, nenhum urso surgiu em duas horas de espera – para desapontamento geral. Na outra, houve o tal “roçamento”, acompanhado de passos, braçadas no rio, caminhadas em cenários diversos. O tal urso parecia mesmo ter sido contratado para um show à imprensa. E é inevitável dizer que deu vontade de trazê-lo conosco de volta ao Brasil – embora eu não me sentisse à vontade de voar em um pequeno hidroavião com o belo animal ao meu lado.

O relacionamento dos “aventureiros” com os ursos é supervisionado por uma profissional que vive no lodge e é paga pelo governo canadense. E isso ocorre porque a espécie ainda corre riscos. Há, no século 21, quem mate ursos para ficar com suas peles. Ou pelo simples prazer de caçar. A família Wyatt, dona do lodge, investiu 100 mil dólares canadenses em pesquisas acadêmicas para proteger os grizzlies. E não apenas porque vive deles, mas porque quase todo canadense sente-se como uma guarda-parques, como os vistos nos filmes.

Falando nisso, este está terminando. O Otter surgiu de novo do meio das nuvens e vai nos levar de volta ao mundo real, onde os celulares apitam e a graça é pouca.